quarta-feira, 8 de julho de 2009

A população que a sociedade rejeita quer sair das ruas


Moradores de rua são alvo de um trabalho incessante da Promoção Social para recuperar vidas perdidas para o álcool


Quem de Vinhedo nunca ouviu falar do Mané Borges? É um morador de rua que tempos atrás ganhou uma fortuna na loteria e torrou todo o dinheiro com álcool, mulheres e jogo (leia matéria abaixo). Vive hoje nas ruas e seu nome virou sinônimo de miséria e fracasso. Os pais amedrontam os filhos: “Não quer estudar nem trabalhar? Quer virar um Mané Borges?”

Mané Borges é apenas mais um entre os atuais 52 moradores de rua assistidos pela Promoção Social de Vinhedo, um trabalho difícil, que busca recuperar uma população invisível aos olhos da sociedade. Segundo a psicóloga Cristiane M.M. Valli, o perfil do morador de rua é o seguinte: a grande maioria é homem (só duas mulheres) e quase a totalidade, com exceção de um, é químico dependente, de álcool, ou álcool e drogas, geralmente crack. As idades variam de 20 a 72 anos, prevalecendo a faixa de 35 a 40 anos.

“Existem três tipos de morador de rua: o itinerante, que não cria raiz no lugar, também chamado 'trecheiro'; o dependente químico crônico, que sai de casa para usar drogas nas ruas; e os que perderam vínculo com a família, muitas vezes por desilusão amorosa”, classifica a psicóloga. Segundo Cristine, com as pessoas que não podem, ou não querem, se recuperar e reintegrar a sociedade, o trabalho é de redução de danos.

Dos 52 moradores que foram acompanhados pela equipe esta semana (o número oscila, geralmente para cima), 16 estão internados em três clínicas, três vivem na “pensão”, uma casa destinada a abrigar os assistidos, oito estão na convivência da família, dois estão na Toca de Assis, dois estão presos, quatro saíram de Vinhedo, cinco vivem com recursos próprios e um morreu. “Nosso índice de sucesso é de 68%, o que é considerado um bom resultado”, destaca Cristiane.

A equipe conta com apenas seis pessoas: uma psicóloga; uma assistente social; um estagiário; dois técnicos; e a coordenadora. O trabalho de abordagem é delicado, porque essas pessoas são desconfiadas, pela própria experiência de rejeição da sociedade. Depois de muita conversa e oferta de auxílio, conseguem conquistar a confiança e atraem os moradores para o programa de recuperação. “Nosso objetivo é tentar restabelecer um projeto de vida e reaproximar as pessoas de suas famílias”, explica Cristiane. Depois da alta terapêutica dos tratamentos, o programa continua com a ressocialização através de grupos de apoio como o alcoólicos anônimos, e com encaminhamento a cursos de reciclagem educacional.

Preconceito dificulta reinserção na sociedade

Uma das maiores dificuldades para consolidar a recuperação dos moradores de rua, depois de passar por todas as fases do programa e estar apto para a reinserção na sociedade, é a oportunidade de uma vaga no mercado de trabalho. O preconceito impera entre os empregadores, com base nos antecedentes destas pessoas, de vício e envolvimento em crimes, baixa qualificação e tempo fora do mercado.

É a dificuldade que está sentindo Marcelo Ferreira Silva, de 33 anos, já fora das ruas , ainda seguindo fases do programa de recuperação, mas sem oportunidade de uma ocupação profissional, um risco para a recaída e volta ao universo dos excluídos.
Marcelo sofreu uma profunda desilusão amorosa em Sumaré, onde era casado, tinha um filho e trabalhava como autônomo. Há pouco mais de um ano rompeu com a família e caiu na estrada, vindo acabar em Vinhedo. Alcoólatra e envolvido com drogas, deixou de trabalhar e passou a sobreviver pela caridade dos moradores do Aquárius. “Ia comprar uma casinha mas minha mulher não gostou do lugar. Brigamos e fui embora”, conta.

Envolvido com as más companhias e drogas, Marcelo foi resgatado pela equipe da Promoção Social, ficou quatro meses internado na clínica Raio de Sol. Quando se sentiu melhor foi visitar o filho no aniversário de seis anos. “Dormi com ele e estava bem, mas não sei porque usei novamente”, disse, referindo-se a uma recaída que o fez voltar à estaca zero. Continua internado em recuperação, e luta diariamente contra “uma doença que não tem cura”, declara, consciente que deverá se controlar o resto da vida.

Tudo que ele quer é encontrar um emprego com carteira assinada, ou trabalhar de caseiro em alguma chácara, para se estabilizar para tentar recuperar o filho. “Faço uns bicos e às vezes fico até de noite trabalhando para não cair na tentação do primeiro gole”, revela. Ele ainda 'mora' na clínica, onde participa de reuniões de grupo.

“A sociedade deve entender que as pessoas estão na rua porque não têm onde morar, que o alcoolismo é uma doença e muito não têm coragem de pedir ajuda”, reforça. “Vivos somos traídos; presos somos esquecidos; e mortos somos saudades”, filosofa.

Casal fugiu do Paraná após denunciar traficantes

O casal Eduardo Farias da Silva (44) e Juliana Leite (28) fugiu do Paraná depois de denunciarem o tráfico de drogas nas imediações onde moravam. “Se ficássemos lá a polícia matava, porque começaram a nos perseguir. Sobrou o mundo”, conta Eduardo. Depois do ocorrido, não tinha mais confiança em ninguém, e evitava as pessoas.
Juliana, alcoólatra como Eduardo, já tinha separado do marido, que ficou com a guarda dos três filhos. “Ele também era traficante, mas o juiz deu a guarda”, conta. Ela trabalhava na roça de café no Paraná, na capina e colheita.

Companheiros de copo e de estrada, Eduardo e Juliana andarilharam até chegar em Vinhedo, onde foram morar no mato. Montaram um espaço ao relento onde cozinhavam, com panelas velhas doadas, em um fogão a lenha improvisado com tijolos, próximo da Estrada da Capela. Juntaram algumas tralhas e ali viveram por três anos. Um dia roubaram suas coisas e encontraram abrigo na Igreja.

Eles mesmos têm preconceito das pessoas de rua. “Se tirar 10% o resto não vale nada”, diz Eduardo, desapontado com a traição. Em albergue se recusa a ficar, porque “só tem drogado, assassino e muita briga”, afirma. A esperança deles, que hoje moram na “pensão”, é arrumar emprego na agricultura da região.

Mané Borges: Uma das maiores 'lendas' de Vinhedo


Conhecido como um dos mais ilustres cidadãos vinhedenses, 'Mané' conta um pouco da sua fantástica história

BRUNO MATHEUS
bruno.matheus@folhanoticias.com.br

Do que se precisa para ser feliz? Quanto 'custa' para se ter uma vida plena e satisfeita? Uma boa reflexão sobre estas perguntas pode ser feita após um incrível papo com uma das maiores personalidades vinhedenses: Mané Borges. Quem não conhece, no mínimo já ouviu falar dele. Cidadão das ruas e bares, ele possui uma popularidade tão grande que alguns afirmam que o ilustre poderia ser facilmente eleito para vereador. “Quem não conhece o Mané, não conhece ninguém”, resumiu um de seus amigos.
Após um 'concerto' musical no 'Bar do Becker', na Rua Jundiaí – Centro, o 'multi-instrumentista' contou um pouco de suas experiências e histórias fantásticas com muita simpatia e bom humor.

Início na roça
“Nasci em Vinhedo mesmo e desde cedo trabalhava na roça carpindo. Perdi minha mãe com nove anos mas ela me ensinou que eu não devia roubar nunca. Depois fui criado por minha tia e estudei até a 2ª série. Mesmo nas ruas, nunca fumei e sempre tive boa conduta”, contou Mané. Ele também afirmou que já trabalhou na Rigesa, em Valinhos, época em que foi casado e teve quatro filhos. Aliás, foi nesta mesma fase que um certo dia Mané teve sua vida transformada.

A sorte grande
“Foi em 1973, eu estava saindo do trabalho quando um homem passou na rua e insistiu para que eu comprasse um bilhete de loteria. Eu não queria, mas resolvi arriscar. Quando vi o resultado depois, quase caí de costas”. Mané Borges ganhara uma 'bolada' na loteria o que garantiu ser hoje o equivalente a R$ 300 mil. “Porém, nesse tempo eu bebia muito e também comprei muitos carros, mesmo sem nunca ter tirado carteira de motorista. Um dos automóveis que tive foi um Simca Chambord vermelho e branco (um dos carros mais desejados da época). Gostava muito dele e fiquei com o 'Rabo de peixe' uns cinco anos até vendê-lo para o Kadú Galvão, que me pagou o triplo do valor. Hoje ele está lá no Wooly Bully”, relembrou.

Da 'pinga' a Turbaína
Mané Borges sempre vagou pela cidade, principalmente pela região central e praça Sant'Ana. Por tocar vários instrumentos, “toco violão, timba, percussão e canto”, afirmou, foi integrante da famosa 'Banda do Brejo' em Valinhos, onde tocava zabumba. O ilustre vinhedense também atuou nos desfiles da extinta escola de samba Garganta Seca. No entanto, por seus problemas com o alcoolismo foi internado na casa de reabilitação 'Raio de Sol'. Também passou dois anos e meio na 'Toca de Assis'.

Pelo tempo 'fora' das ruas, muitos pensaram que Mané tinha morrido. Recuperado, Mané continua frequentador assíduo de vários bares da cidade como o 'Bar do Rocha', mas só para manter o papo em dia com os amigos pois largou a 'pinga' e agora só toma Turbaína e leite.

O legado de Mané Borges

Detentor de um impressionante carisma, o personagem das ruas afirmou também que é sobrinho do lendário homem do poço. Piadista, sobre sua fama contou: “Uma vez eu estava em Ribeirão Preto sem carta, achei que ia ter o carro apreendido mas o policial que me viu me conhecia. Ele me parou e falou: 'Mané, você está sem carteira, né!?', eu admiti que sim e ele concluiu: 'Vai, pode seguir sossegado'.

Hoje, aos 61 anos, é praticante de bocha (afirmou que é campeão), sinuca, dominó e jogos de baralho como 'bisca'. Até pouco tempo atrás catava latinha mas atualmente atua mais como 'músico' às sexta-feiras no 'Bar do Becker', onde se apresenta com vários amigos entre eles João Cigano. Sobre seu gosto musical comentou: “Gosto de Nélson Gonçalves, Raul Seixas e Elvis Presley, mas meu gênero favorito é música caipira”.

Mané Borges está presente até no site de relacionamentos orkut, onde a ele é dedicada uma comunidade que integra 370 membros. A 'lenda' vinhedense finalizou proferindo: “Já fui atropelado várias vezes, assaltado e até me botaram fogo (ele passou quatro dias internado. Contribuo com as pessoas doando sangue, sou O positivo – doador universal. Como no La Budega porque me fazem um preço legal. Ressalto muito a amizade pois quem tem amigo, tem tudo. Sou muito feliz assim”.

Sociedade exclui e ignora


“Ligeira”, “trecheiro”, mendigo, indigente, pedinte, miserável, sem teto ou simplesmente morador de rua. Não importa a denominação, mas sim a condição de vida que possui um contingente incalculável de pessoas alijadas, marginalizadas, excluídas do convívio normal, e na grande maioria discriminadas, desprezadas e rejeitadas pela sociedade.

É uma população que cresce a cada dia como resultado inevitável do sistema capitalista copiado do modelo americano onde os vencedores ficam ricos e os perdedores são simplesmente descartados da mesma forma que produtos de consumo com validade vencida. A reportagem da “Folha de Vinhedo” foi investigar a realidade dos moradores de rua da cidade e encontrou pessoas frágeis, desiludidas e, invariavelmente, com problemas emocionais e de consumo de drogas, principalmente alcoolismo.

Um resultado que era esperado e não revelou muitas surpresas. Mas o trabalho desenvolvido pela Promoção Social na tentativa de resgatar essas vidas perdidas para o álcool, e o envolvimento de outros setores do poder público e entidades para atendimento a essa população, se revelou bastante interessante. Surpresa mesmo surgiu na entrevista do repórter Bruno Matheus com o morador de rua mais ilustre de Vinhedo, ícone e herói dos desgarrados do convívio familiar e social 'normal': Mané Borges, homem que ganhou na loteria e terminou nas ruas, venceu o álcool e hoje diz que vive feliz com sua condição.

O que mudou a vida de Mané Borges foi a fortuna repentina inesperada, e a dos outros moradores de rua a miséria gradativa e anunciada. O combustível para a jornada às sarjetas foi, para 95% dos casos, o alcoolismo. Daí surgiram a desagregação familiar, profissional e social. As desilusões amorosas fazem parte da maioria das histórias destes moradores como justificativa para a situação em que se encontram.

O resultado de recuperação dos moradores de rua pelo CRAS (Centro de Referência de Assistência Social), de mais de 60%, é bastante expressivo, principalmente por se tratar de uma população resistente a mudanças em seu modo de vida, tanto por aqueles que escolheram essa opção, como pelos que não acreditam mais na possibilidade de voltar a integrar a sociedade. Os poucos que tentam enfrentam grandes dificuldades para reinserção no mercado de trabalho e são diariamente tentados a recaídas no alcoolismo.

A mudança de olhar da sociedade em relação a essas pessoas poderia ajudar bastante a facilitar o caminho de volta, mas a resistência parece ser muito maior que a daqueles que querem deixar as ruas.